«Os Oito Odiados»: Intrigantemente pouco humano

Numa diligência, temos um caçador de recompensas, John Ruth (Kurt Russell), e a sua presa, Daisy Domergue (Jennifer Lason Leigh). Eis senão quando chega mais um caçador de recompensas, Marquis Warren (Samuel L. Jackson). Adiciona-se mais um xerife wannabe, Chris Mannix (Walton Goggins), e está montada a cena de entrada de Os Oito Odiados (2015), de Quentin Tarantino. Daqui até ao próximo cenário, atravessa-se um longo caminho de desconfiança, alguma violência física e verbal, mas, acima de tudo, uma grande vontade de chegar ao destino. 

Chegados à Minnie's Haberdashery (a infame Retrosaria da Minnie, que de retrosaria pouco tem), encontram mais uma série de elementos perdidos e encontrados por causa de uma tempestade de neve, que teima em não querer que as conversas escapem pela porta do estabelecimento (e que insistente esta porta!). Daí até ao final, assiste-se a um “Cluedo” à Tarantino: bons diálogos, interessantes discussões e pontos de vista de como funcionou uma América que, pensávamos, não chegaria nestes moldes aos dias de hoje.

Samuel L. Jackson em Os Oito Odiados. Foto: Out Now.
Com um argumento bem estruturado e assente na inventiva transformação de um filme numa peça de teatro - a composição cénica, acompanhada da “inovação” dos 70mm (que não chegou até nós), obriga a um sentimento de pertença do espectador a um espaço quase real, como se de um palco se tratasse -, Tarantino deposita uma boa parte das suas técnicas ficcionais na primeira parte do filme: os diálogos, a construção de um passado, de um presente e de um desejado futuro para cada uma das personagens e a intriga. 

Ao passo que esta primeira metade nos deixa presos ao filme como poucos têm deixado nos últimos anos, a segunda leva-nos pelos caminhos da resolução da história. À Tarantino. Violentamente desbragado, Os Oito Odiados leva-nos por uma viagem de agressividade, (muito) sangue e uma crueldade desmedida. Pode parecer um exagero dizê-lo mas, até para os padrões do realizador, talvez tenha sido violência a mais.

Quentin Tarantino dirige o elenco de Os Oito Odiados. Foto: cine.gr.
A componente visual do filme, com uma perfeição quase emocionante na forma como somos transportados para um tempo do Cinema que já não é o nosso, juntamente com a criação de mais um argumento empolgantemente intrigante, prendem-nos na cinematografia de Tarantino como algumas das suas obras-primas. Contudo, sublinhe-se, a metade do filme que corresponde à conclusão do que este nos quer contar desilude. A extrema violência de algumas cenas acaba por sobrepor-se à qualidade de um argumento singular, talvez nunca visto na sua carreira. 

A adição de Ennio Morricone (um desejo antigo de Tarantino) não se torna tão histórica como ambos, provavelmente, desejariam, mas temos um Samuel L. Jackson em plena forma, acompanhado de uma Jennifer Jason Leigh, que segue, filme adentro, apostada em ganhar um Óscar pela sua prestação. Numa história nada previsível, acabamos por cair num ponto pouco comum nas histórias do génio por detrás de Pulp Fiction (1994) ou Django Libertado (2012, crítica aqui): a falta de identificação do espectador para com qualquer uma das personagens. Seguimos sempre ao sabor do que a história tem para nos contar, de uma beleza visual extraordinária, de excelentes interpretações, mas pouco ligados emocionalmente ao que vive cada uma daquelas pessoas. Se há coisa em que Tarantino raramente falha é na humanização dos seus filmes, mas Os Oito Odiados é um desses casos.