'12 Anos Escravo' - O vil ser humano

Chiwetel Ejiofor, o protagonista Solomon Northup enquanto "homem livre" em 12 Anos Escravo. Foto: Cine.gr.

Repugnante, mesquinho, patético, estúpido, uma besta em corpo humano. Quando vemos 12 Anos Escravo (2013) passam-nos estes adjectivos e muitos outros pela cabeça. Podemos até pensar que aquilo que nos é contado não é normal e tentamos perceber ali qualquer exagero cinematográfico à Hollywood. Mas não, o que ali está foi a norma, o dia-a-dia de milhares e milhares de pessoas. Do agressor ao agredido. 12 Anos Escravo não é só um filme, é um retrato demasiado forte para não passar à história do Cinema.

Esta é a terceira longa-metragem do britânico Steve McQueen, sendo que todas elas contaram com a participação do actor alemão Michael Fassbender naquela que se está a tornar uma imagem de marca do realizador. Produzido por Brad Pitt e com um argumento baseado na história verídica de Solomon Northup, este filme leva-nos até ao século XIX, ao mundo da escravidão, do tráfico e venda de escravos. Leva-nos, ao pormenor, a casos de rapto de homens livres para o mercado da escravidão. Solomon foi um desses casos.

No meio de um tema tão dramático e com tanto para poder cair no melodrama, no sofrimento de alguém (ou de muitos "alguéns") e na forma como aquela gente tentava sobreviver dia após dia, o resultado final é de uma felicidade incrível.

Michael Fassbender, Lupita Nyong'o e Chiwetel Ejiofor num trio com uma carga dramática elevadíssima. Todos em grande em 12 Anos Escravo. Foto: Cine.gr.

Pegou-se numa história verídica, adaptaram-se os pormenores ao retrato cinematográfico mais indicado, à construção de argumento com mais sentido e com maiores probabilidades de ver a história ser (bem) contada. Juntou-se tudo com um realizador que tem mostrado qualidades nos últimos anos (apesar dos poucos filmes que fez), um elenco de respeito que correspondeu com uma nota muito elevada, uma fotografia fabulosa e uma construção cénica digna dos mais relevantes prémios.

Ao nível das prestações individuais, o destaque vai, claramente, para o protagonista, Chiwetel Ejiofor, que aqui faz o suficiente para ter, desde já, lugar marcado na lista de nomeados ao Óscar de Melhor Actor. E, arriscaria dizer, uma séria possibilidade de o levar para casa. Fabuloso. A um nível próximo, com uma fortíssima carga dramática e uma enorme vontade de deixar uma marca com a sua Patsey, Lupita Nyong'o, que também se mostrou capaz de chegar longe nos prémios individuais. Para além dos protagonistas, há também Brad Pitt e Benedict Cumberbatch, por exemplo, quase como "bónus", e uma quase despercebida Quvenzhané Wallis, que aqui não faz, de todo, jus à nomeação para os Óscares que conseguiu no último ano por Bestas do Sul Selvagem (2012, crítica aqui).

Num filme que começa com uma interligação (inicialmente confusa, diga-se) entre passado e presente, o rumo da história torna-se verdadeiramente claro e nada linear. Com pouco de previsível, a história é contada com um enorme respeito pelos intervenientes. Até os pormenores mais sórdidos, capazes de afastar os estômagos e os corações mais sensíveis, são mostrados com uma grande sensibilidade. Apesar da clara intenção de chocar o espectador.

A realização sobressai no meio da história como um meio para atingir um fim, sendo este uma determinada perspectiva, que é a desejada por McQueen. Uma clara "vitória" pessoal do realizador, que conseguiu alcançar aquilo que desejou com a ajuda de um trabalho de fotografia assinalável por parte de Sean Bobbitt.

O medo, a ganância, o preconceito, a religião como mote para uma forma de pensar, o sofrimento, o desespero e a falta de qualquer tipo de esperança. Há disto e ainda mais na relação entre Fassbender e Ejiofor. Foto: Cine.gr.

O maior senão do filme talvez seja a música. Apesar de a cargo do consagrado Hans Zimmer, acaba por tornar-se algo meramente complementar à história que está a ser contada, não saindo como algo verdadeiramente realçado, com um destaque ao nível dos restantes elementos. Cumpre, mas podia ter sido algo maior.

Nada disso obsta a que o mais forte de tudo seja a história que é contada. A forma como os vilões - sim, (bem) mais do que um - se destacam pela tentativa de racionalização de algo que de racional nada tem é uma excelente forma de colocar em perspectiva uma realidade que nunca o deveria ter sido. McQueen e John Ridley (o responsável pela adaptação do livro de Solomon Northup para argumento), pela forma como apresentaram a história, conseguiram, sem dúvida, colocar em cima da mesa um ponto muito importante: até que ponto o Homem é um animal racional quando comparado com os restantes seres vivos?

Podemos considerar algo racional apenas e só porque houve um pensamento por detrás que levou a uma determinada ideia ou ideologia mesmo que ela seja errada a todos os níveis? Podemos usar a religião a nosso bel-prazer para dar resposta aos nossos preconceitos? Pode a religião ser uma grande culpada nas injustiças que se cometem com regularidade apenas e só porque leva a que a racionalidade de alguns a veja como verdade inegável?

Acima de tudo, 12 Anos Escravo dá que pensar. Não é apenas um murro no estômago; é uma tareia no corpo inteiro. É um acto de violência mental para com o espectador que é necessária para deixar aquelas e muitas outras questões a pairar na cabeça de cada um. É uma forma feliz e extremamente bem conseguida de mostrar o que de pior o ser humano tem. E enganem-se os que acham que aquilo que acontece na história de Solomon Northup se ficou pelo século XIX. É uma realidade que se repete há centenas de anos e que se mantém no tempo presente. Porque o ser humano, no meio da sua pretensa racionalidade, continua vil, mesquinho, preconceituoso e violento para com a diferença. Esperemos que o provável filme do ano que é 12 Anos Escravo consiga levar o mundo a reflectir sobre isto. E que seja devidamente premiado pela forma como o faz.