«Capitão Phillips» - O Plano Que Nunca Foi

Conhecido por dois títulos da saga Bourne e por Voo 93 (2006), dedicado a contar a história dos passageiros de um dos voos do 11 de Setembro de 2001 que se sobrepuseram aos sequestradores, Paul Greengrass avança, em Capitão Phillips (2013), para mais uma história baseada em factos verídicos.

"Baseada" é mesmo a palavra correcta. Não será preciso procurar muito para encontrar referências que defendem que a história contada pelo Capitão Richard Phillips não é, de todo, a verdade dos acontecimentos. Mas, aí, cada um acredita na versão que quiser e ninguém esperará que um filme - muito menos de Hollywood - conte a história tal e qual ela aconteceu. É uma indústria dedicada ao entretenimento e que baseia as suas produções numa série de aspectos-chave que funcionam nesse sentido.

Em Capitão Phillips, sabemos que o Capitão Richard Phillips é-o na marinha mercante e que tem como missão levar um cargueiro de Omã até Mombaça, no Quénia. Para o fazer, terá de passar, em 2009, no caminho para o auge da pirataria naquela região, pelo Corno de África. Ali, é usual assistirem-se a assaltos por parte de piratas somalis a cargueiros e outras embarcações (ricas, preferencialmente). A partir daí, a história desenrola-se num certo sentido e não vale a pena contar mais do seu conteúdo.

A história contada no filme não é linear. Tal como aconteceu há um ano com 00:30 A Hora Negra (2012; crítica aqui), de Katheryn Bigelow, os factos retratados não são abordados com aquela típica ênfase no lado americano. Muito longe disso e, tal como nesse filme, é algo que agrada e que serve para se distinguir da "norma".

Tom Hanks e Barkhad Abdi em Capitão Phillips. Foto: cinemagia.ro.

Neste filme, Greengrass e Billy Ray (o responsável pelo argumento baseado no livro escrito pelo próprio Richard Phillips) encarregam-se de aproveitar uma sequência de acontecimentos verídicos para colocar em evidência muitas questões. Quando vemos Capitão Phillips, não estamos só a sofrer com a angústia dos visados naquelas imagens, com realização ao estilo documental, um dos aspectos mais interessantes e bem conseguidos do filme, a par da brilhante montagem - se não ganha o Óscar agora no início de Março, será criminoso. 

Estamos também a rodear-nos de questões morais. Elas não são impostas, o argumento, os diálogos e os olhares são muito subtis nesse sentido. Eles estão lá, mas é todo um panorama em aberto para que cada um o interprete da forma que lhe aprouver.

Capitão Phillips, para lá da história de um navio atacado por piratas, com cenas de acção e suspense bastante bem conseguidas e que fazem palpitar os corações menos sensíveis, conta a história de um plano. Um plano que nunca chegou a sê-lo: o de alguém que, procurando fazer uma vida normal, encontra uma espécie de oportunidade para o conseguir. Essa oportunidade não é das mais satisfatórias mas, a médio ou longo-prazo, haverá de compensar o esforço e os riscos que se tomam. É como seguir um plano que nunca foi traçado porque não havia maneira de o fazer. Aproveitando uma expressão marítima, é a forma de alguém viver navegando à vista.

Esse plano, que nunca chegou a ser, continua a existir, na mais imprevisível das consequências e dos rumos. Temos, de um lado, um capitão da marinha mercante norte-americana que, trabalhando numa zona perigosa, tenta acautelar alguns perigos e preparar-se para o pior, nunca esperando, contudo, aquilo que será o seu futuro.

O grupo de piratas que se aventurou na tomada de assalto do navio Maersk Alabama: Barkhad Abdirahman, Barkhad Abdi, Faysal Ahmed e Mahat M. Ali. Foto: cinemagia.ro.

Do outro lado, o mais grave. Uma Somália pobre, à mercê das pretensões mais ou menos gananciosas das forças ocidentais, recheada de jovens (e outros nem tanto) que apenas procuram ter uma forma de vida que lhes permita fazer isso mesmo: viver. Muitos deles, pescadores sem trabalho. Muita gente ignorante, sem estudos porque nunca lhes foi possível tê-los nas melhores condições. Gente que acredita nos mais desprezíveis seres a que chamamos de humanos. Gente vulnerável às menos dignas ideias criadas pelo Homem e que, facilmente e em troca de muito pouco para lá de promessas, é levada a agir em nome de alguém nos meios mais ingratos. 

Nada justifica que esse seja o caminho a seguir numa situação dessas, mas a vulnerabilidade leva o ser humano a reagir das formas menos respeitáveis. Naquele contexto, e para quem estudou minimamente a realidade da região do Corno de África naquela época, o normal era a pobreza e a procura de qualquer coisa que desse o mínimo de dinheiro para uma família viver. Daí, esta espécie de plano, encarnado por Barkhad Abdi, o actor somali que brilha a um nível soberbo em Capitão Phillips na representação de Muse, o jovem pirata que chefiou a quadrilha. A actuação valeu-lhe mesmo uma nomeação ao Óscar de Melhor Actor Secundário.

A acompanhar Abdi, temos um fabuloso Tom Hanks. Este par, que de romântico nada tem, numa boa parte das vezes, não precisa de qualquer tipo de diálogo para fazer passar uma mensagem. Entre eles e para o espectador, um olhar é suficiente para se perceber o que sentem e o que querem dizer mas não podem. É uma mensagem subliminar interessante a passada por Greengrass neste filme, a qual deixo para cada espectador descobrir para si próprio e perceber do que trata realmente este filme.


Paul Greengrass a dar indicações ao grupo de actores que interpretou a quadrilha de piratas somalis. Foto: cinemagia.ro.

Não posso deixar de finalizar com uma referência à globalidade do filme: o rumo dos acontecimentos está recheado de suspense, de incerteza, de dúvida. A montagem, como disse, é absolutamente incrível e leva este filme para níveis impensáveis numa estrutura diferente. É um grande filme, com uma história com pouco que se lhe diga em termos cinematográficos se não tivesse a tal componente moral e psicológica.