«Jackie»

Os EUA e o mundo viram o assassinato do Presidente John F. Kennedy, em 1963, naquele que foi um dos momentos mais marcantes do século XX. Mas e ela? O que aconteceu à jovem esposa que estava ao seu lado e assistiu, impotente, ao homicídio do marido? Este é o cerne de Jackie (2016) que dá total relevo à primeira-dama Jacqueline Kennedy, uma figura tão icónica como praticamente desconhecida na sua essência para os norte-americanos. 

Longe de ser um típico biopic, o filme centra-se na semana do próprio acontecimento, com recurso a alguns flashbacks e usando uma entrevista que Jacqueline concedeu a um jornalista da revista Life. Ao longo da obra, ficamos a conhecer as diferentes vertentes de Jackie, ora mais pública ora mais privada, sendo que os melhores momentos acontecem quando se dá espaço para aprofundar os pensamentos e dúvidas da protagonista, momentos esses em que o argumentista Noah Oppenheim tentou descortinar através dos cortes de edição que a própria exigiu na entrevista. Pablo Larraín tem em Jackie o grande desafio da sua carreira: o primeiro filme em inglês e o primeiro em que é uma mulher a protagonista, numa história marcadamente norte-americana, o que se revela mais difícil para ele, que é chileno. O cineasta passa com distinção no teste, filmando com mestria uma história difícil, sem se deixar resvalar para o caminho mais fácil do melodrama. A narrativa está bem construída e consegue surpreender aqui e ali, fugindo à linearidade e humanizando uma figura que a maioria conhece apenas de forma superficial. A produção cénica é vistosa e a fotografia inspirada e distinta de Stéphane Fontaine vai ao encontro da ambiência mais sombria e intimista da obra. Para tal também contribui a corpulenta banda-sonora de Mica Levi, que assume um papel predominante ao longo do filme, numa presença tão marcante como a moldura musical de Jóhann Jóhannsson em O Primeiro Encontro (2016, crítica aqui).

Natalie Portman em Jackie. Foto: natalieportman.com.
Larraín exigiu que a protagonista fosse Natalie Portman e não poderia estar mais certo: a atriz é avassaladora, apresentando uma das melhores interpretações da sua carreira. Muito esforçada em conseguir captar os maneirismos e a voz muito característica de Jackie, Portman entrega-se nas cenas mais dramáticas e retém noutras toda a expressividade e emoção através apenas do olhar. Apesar de a atriz ser maioritariamente o grande foco, o elenco secundário também acerta, com interpretações singulares de Billy Crudup, Peter Sarsgaard e John Hurt. 

Esmagador em alguns momentos e surpreendente em muitos outros, Jackie aborda a importância do legado envolto na crueza do luto, através da história de uma mulher que enfrentou uma situação impossível, tendo de encarar de frente o mundo – e ela própria –, sabendo perfeitamente que tudo o que fizesse iria ficar na História. Foi ela que criou o mito de Camelot, procurando elevar, o mais que pôde, a forma como o seu marido iria ser lembrado e dar alguma realeza a um país que nunca a conheceu. Sim, houve Camelot mas também existiu Jackie. E agora, com este filme, é a vez dela de ser a protagonista. 

(Crítica originalmente publicada no site da Metropolis e na edição n.º 46, de fevereiro de 2017, da revista Metropolis)